segunda-feira, 21 de abril de 2014

Praticidade


Essa semana eu e Neha fomos comprar blusas. Fomos em lojas com roupas mais modernas, onde você entra de sapato, tem um balcão, e vendedores em pé atrás do balcão. Ainda assim todas as roupas ficam embrulhadas em saquinhos, então você depende do vendedor ir te mostrando. O vendedor geralmente desembrulha muito mais roupas do que eu tenho interesse de ver, mas como independente do que eu fale ele não para, ficamos por isso mesmo. As lojas não tem espaço para provar, então as pessoas ou compram sem provar ou levam a roupa pra casa e depois retornam.
Eu estava procurando um qurta pra comprar, que é como uma bata comprida até o joelho, aberta na lateral, que se usa com legging. As mulheres que não usam sari geralmente usam qurta, é uma roupa tradicional mas é mais prática que o sari, o corpo fica protegido, e pra mim é uma forma de eu ficar mais disfarçada aqui. A legging é ótima porque é 10 vezes mais fresca e confortável do que a calça jeans. Aqui não se usa perna de fora nunca, vejo mulheres de barriga de fora, de ombro e braços descobertos, mas da cintura pra baixo está sempre tudo coberto, homens também, ninguém usa short ou bermuda.

Esse qurta que eu comprei é uma bata sem mangas, o tecido das mangas vem solto, caso você queira incluir mangas. Já vi muitas outras roupas assim por aqui, vestidos e qurtas que acabam no ombro mas vem com o tecido para a manga. Eu queria com mangas, então comprei a qurta, levei pra casa provei, gostei, decidi que queria as mangas, voltei no dia seguinte para eles costurarem as mangas, e hoje vou lá de novo pegar o resultado final. Significa que eu fui 3 vezes na mesma loja pra conseguir comprar uma blusa.
Nesse mesmo dia, fui em outra loja com a Neha. A loja também não tinha provador, e era esse mesmo esquema das roupas em saquinhos, então a Neha selecionou umas 10 blusas, levou todas pra casa, provou, e no dia seguinte foi lá devolver 9 e comprar uma. Eu fiquei pensando, será que ela pode não comprar nenhuma? Depois de ter levado todas pra casa? Não saquei qual é a etiqueta de uma situação dessas, mas a sensação que eu tenho aqui é que a partir do momento que você entrar na loja, significa que você vai comprar alguma coisa. Ninguém entra só pra olhar, como a gente faz no ocidente, e os vendedores parecem meio chateados se você entra e vai embora. A sorte é que eu passo ilesa desse constrangimento com o meu disfarce de turista que nunca entende nada.

Esse estilo de funcionamento das lojas é um detalhe, mas fala muito de como a sociedade indiana lida com o tempo.  As pessoas aqui tem tempo de ir 3 vezes na mesma loja comprar uma roupa. Em outros lugares da índia talvez seja diferente, mas aqui no interior tenho prestado muita atenção nisso. E se o vendedor desembrulha 20 blusas pra cada cliente que entra, quantas blusas por dia será que ele embrulha de volta? Que parcela do tempo de trabalho dele ele gasta reembrulhando roupas?
E o sari, que você tem que ir na loja de sari, na loja de tecido e na costureira, pra uma semana depois poder usar?
Aqui o tempo não parece ser organizado em cima do conceito da praticidade. Praticidade é um conceito ocidental capitalista de otimização do tempo, não consegui descobrir quando foi inventado mas eu localizaria a invenção da praticidade no Fordismo americano. Diminuir o desgaste humano e encaixar o máximo de coisas no menor espaço de tempo. Estando aqui percebo que essa coisa de buscar o máximo de conforto e o mínimo de trabalho é bem ocidental.
Aqui não está faltando tempo, as pessoas não precisam otimizar nada, e a sociedade parece ter prioridades que não são o conforto. Isso esta presente em cada hábito cultural deles, é uma coisa impressionante de se observar. Por exemplo, se cada vez que você vai ao banheiro você tem que se lavar, quanto tempo a mais se gasta nesse tipo de higiene do que com papel higiênico? E o sari, como se vai ao banheiro de sari? Quanto tempo se gasta pra levantar aquele tecido todo?
Outro exemplo, as panelas aqui não tem cabo nem tampa. São tigelas de metal que você pega com uma pinça gigante,  e quando quer tampar usa um prato.


panelas da minha casa




Por último meu exemplo favorito, as portas aqui não tem fechadura e chave, elas tem trancas de correr que você fecha com um cadeado. Parece simples mas é impressionantemente não prático e complicante. Hoje mesmo fiquei trancada pra dentro de casa, Carlos foi na rua consertar a bicicleta e fechou a tranca pelo lado de fora, eu quis sair e não consegui. A gente tem duas portas, a do apartamento e a do prédio, nenhuma fecha só de bater. Se ele não tranca a porta do prédio ela fica aberta pra rua, então ou ele tranca por fora ou toda vez que alguém sair de casa outra pessoa tem que ir lá em baixo fechar por dentro, e quando a pessoa que estava na rua voltar, alguém tem que descer pra abrir. A cereja do bolo é o detalhe de que o cadeado não fecha só de você pressionar ele, é necessário tranca-lo realmente, passar a chave para ele fechar. Nossa sorte é que na maioria das vezes saímos e voltamos todos juntos.




São vários pequenos detalhes que fazem você levar bem mais tempo nas coisas cotidianas. No inicio me irritava, como assim eu vou três vezes na mesma loja comprar uma única blusa? que perda de tempo, quando eu preciso trocar alguma coisa no Rio levo quase um mês pra ir, porque não consigo parar as outras coisas que estou fazendo. Mas agora tenho achado interessante viver esse outro tempo, eu tenho esse tempo aqui, todo mundo tem, tenho respirado fundo e controlado minha ansiedade ocidental que tenta resolver tudo em 10min. Chego na loja as pessoas trazem cadeira, te oferecem chá, perguntam da onde você é, e por ai vai. É uma cidade que não está atrasada apressada batendo ponto fazendo coisas pra ontem, é um lugar que vive num ritmo familiar, que a prioridade parece ser a tradição, e não o conforto e a praticidade.

Vamos ver como vai ser no resto da Índia, quando descobrir conto aqui.


Um comentário:

  1. Oração Ao Tempo | Caetano Veloso

    És um senhor tão bonito
    Quanto a cara do meu filho
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Vou te fazer um pedido
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    Compositor de destinos
    Tambor de todos os ritmos
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Entro num acordo contigo
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    Por seres tão inventivo
    E pareceres contínuo
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    És um dos deuses mais lindos
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    Que sejas ainda mais vivo
    No som do meu estribilho
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Ouve bem o que te digo
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    Peço-te o prazer legítimo
    E o movimento preciso
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Quando o tempo for propício
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    De modo que o meu espírito
    Ganhe um brilho definido
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    E eu espalhe benefícios
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    O que usaremos pra isso
    Fica guardado em sigilo
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Apenas contigo e comigo
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    E quando eu tiver saído
    Para fora do teu círculo
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Não serei nem terás sido
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    Ainda assim acredito
    Ser possível reunirmo-nos
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Num outro nível de vínculo
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    Portanto, peço-te aquilo
    E te ofereço elogios
    Tempo, tempo, tempo, tempo
    Nas rimas do meu estilo
    Tempo, tempo, tempo, tempo

    ResponderExcluir