terça-feira, 26 de agosto de 2014

Varanasi



A cidade sagrada onde os hindus vêm morrer. Varanasi tem as ruas mais estreitas que eu já vi, aqui faz as ruas do Saara parecerem avenidas. É uma das cidades mais antigas do mundo, é assim a parte antiga (que é a que interessa), fora da old town tem ruas normais, lotadas de tuktuks barulhentos. Na cidade antiga os tuktuks não entram porque não cabem, tem rua que não entra nem moto. A cidade antiga é lotada de vacas gigantes, cachorros muito sarnentos, cabras e a noite sapos que vem rio.

Varanasi fica a beira do Ganga, toda a orla do Ganges é composta por escadas (ghats) onde as pessoas vão tomar banho, lavar roupa, e aqui morrer. Todos os rios que eu vi até agora tem escadas que encontram as águas. É meu segundo encontro com o Ganga, o primeiro foi em Rishikesh, dizem que lá ele é limpo, cheguei a molhar meus pés na água, mas aqui em Varanasi a notícia é de que é tão sujo que não tem mais oxigênio na água, não sei se é verdade. Ainda assim todo mundo toma banho e lava roupa. Por sorte estou num hotel que tem máquina de lavar, mas muitos outros hotéis que eu fiquei o serviço de lavanderia é no rio local. Fiquei meio com nojo quando descobri, depois me achei ingênua, óbvio que era no rio o tempo todo.

Os hindus morrem cremados, nos ghats são organizadas fogueiras a céu aberto onde os corpos queimam, é impressionante não pelos corpos em si mas pela exposição da cerimonia funerária. O lugar é visualmente caótico com pilhas de madeiras altíssimas e muita fumaça e muita gente, mas até que é organizado, em torno do ghat ficam lojas que vendem madeira para cremação, ghee (é uma manteiga mais líquida, eles usam na culinária e também pra besuntar o corpo pra pegar fogo mais fácil – estranhíssimo saber que o que eu como é também usado nos cadáveres), pó de sândalo, incenso, flores, etc. As lojas de madeira tem uma balança e variedade de madeiras, a madeira da mangueira é a mais nobre pois manga é a fruta que Shiva come em uma das histórias do Bagavhagita eu acho. Isso foi o que alguém me contou, cada pessoa que eu pergunto fala um preço diferente, é impossível ter uma resposta absoluta na India, eu desisti, hoje em dia escolho a história que gosto mais. O quilo da mangueira custa entre 250 e 300 rupias, precisa de 40 quilos pra queimar um corpo, o que faz com que a cerimonia seja cara. Tem também madeiras mais baratas, que custam entre 5 e 10 rupias o quilo. Só se paga a madeira e os produtos, não se paga o fogo nem o serviço das pessoas que trabalham no ghat, ainda assim nem todo mundo pode bancar uma cerimônia dessas. Outra pessoa me disse que se paga sim os serviços e também o fogo usado. Em torno do ghat tem duas lajes onde são queimados os corpos que não cabem na plataforma perto do rio, na beira do rio cheguei a ver 8 fogueiras de uma vez, e nas plataformas 6. Em torno de 200 corpos são queimados por dia, o lugar funciona 24h por dia, o dia inteiro a noite toda. 




As cerimônias são mais ou menos elaboradas dependendo da condição financeira da família, vi um corpo em uma fogueira mais robusta e com incenso, ghee, pó de sândalo e outras coisas, e outra fogueira que era só madeiras e o corpo. E isso são as famílias que conseguem pagar, no rio de vez em quando passam corpos boiando das famílias que não tem dinheiro e apenas jogam o corpo no rio. Eu não vi ainda, mas pessoas locais me falaram que é comum. Também são jogados diretamente no rio crianças menores de 10 anos, mulheres grávidas, saddhus (homens santos), leprosos e mortos por mordida de cobra. A morte por mordida de cobra é considerada uma sorte pois cobra é o animal de Shiva, então a mordida é entendida como um sinal divino. Sadhus são puros, não precisam purificar pelo fogo, crianças tem a pele fina como flor e não se joga flor no fogo (também são entendidas como puras), mulheres grávidas tem o bebê puro dentro, e leprosos acredita-se que queimando o corpo se espalha a doença pelo ar, além disso fedem muito quando queimam, por isso vão direto pro rio. Hoje vi uma criança ser jogada no rio, eles mergulham a criança no rio, enrolam o corpo numa pedra, vão de barco até o meio e o jogam do barco. Para crianças os barqueiros não cobram nada, acho que já é triste o suficiente ter que levar uma criança morta, para outros corpos cobra-se o serviço do barco; os barcos funcionam por um sistema de vez, tem muitos barcos. O pai dessa criança chorava muito hoje, foi a única pessoa que eu vi chorando em todo ghat. Os hindus queimam os corpos para purificar e depois jogam no rio que é sagrado, diz-se que morrer em Varanasi possibilita encerrar o ciclo de reencarnações e karmas e encontrar a paz iluminada do nirvana.




Em toda a área das cremações só é permitida a entrada de homens, as mulheres foram proibidas de participar da cerimônia há não muito tempo porque choravam muito e porque muitas se jogavam no fogo atrás dos maridos. É difícil casar de novo na sociedade hindu e as mulheres geralmente não trabalham e tem filhos para criar, então ficar viúva é bem desesperador pela falta de perspectivas. É estranho que no ghat só tem homens e eles são responsáveis por todo o processo funerário, que responsabilidade. O familiar mais próximo do falecido (filho/ irmão/ marido) raspa a cabeça e é o responsável por acender a fogueira. Junto com as lojas de madeira tem um ou outro barbeiro que com uma gilete raspa a cabeça dos homens no meio da rua.

O ghat tem um fogo eterno que acende as fogueiras, uma pessoa me disse que o fogo eterno acende todas as fogueiras e outra me falou que você paga 350 rupias pra ter o fogo eterno acendendo a fogueira do seu ente querido, os trabalhadores responsáveis por acender as fogueiras não falam inglês então não consigo mais detalhes. Esses trabalhadores que trazem o fogo são os mesmos que montam a fogueira e dão assessoria durante a cerimônia, me contaram que todos que trabalham com mortos são da casta dos intocáveis, dalits. Eu não sei dizer, o sistema de castas é muito forte mas passa quase imperceptível aos olhos dos turistas, são sutilezas no modo que as pessoas se tratam e falam umas com as outras que sem entender a língua eu não consigo perceber. A fogueira leva 3 horas para queimar totalmente, ao fim os trabalhadores jogam os ossos que sobraram no rio. Pela manhã se limpa a área para recomeçar, algumas pessoas roubam as jóias que caem dos corpos e ficam entre os restos das fogueiras, e alguns locais pegam as brasas das fogueiras pra fazer comida.

Em torno das fogueiras fica uma barraca que vende pó de sândalo e outras coisas, fiquei muito tempo sentada nessa barraca conversando com o dono e outros homens, olhando em torno e tomando chá. Os familiares ficam em torno dessa área esperando a fogueira queimar, quando acaba se banham no rio, trocam de roupa e podem ir pra casa. Presenciei uma briga hoje, os homens de uma família estavam reclamando com o dono de uma das lojas que a madeira estava demorando demais para queimar. Os vendedores de madeira vendem seu produto defendendo que essa ou aquela madeira queima mais rápido, e as famílias compram. O lugar todo tem muita fumaça, geralmente tem cheiro de sândalo ou meio de churrasco ruim e nas áreas mais próximas das fogueiras arde muito o olho. No entorno tem bastante saddhus e babas, senhores santos, e búfalos, cachorros e cabras.

Acho louquíssimo ter essa quantidade de detalhes de um processo que no ocidente acontece de portas fechadas e com tanta intimidade, eu vi os corpos chegando, os homens montando a pilha de madeira, colocando o corpo, todo o ritual até colocar fogo, eu sei se é homem ou mulher, o preço da madeira, o corte de cabelo do filho ou marido, acho impressionante como é exposto. Na maioria dos enterros no Brasil quando o corpo morre ele vai pro necrotério e é arrumado todo lá dentro, você não tem informação nenhuma do processo, você não sabe quem cavou o buraco quem vai enterrar o corpo, não é a família que coloca ele no caixão, não é a família que arruma, maquia, veste, é tudo velado e distante. Eu lembro que quando o meu avô morreu ele estava no hospital, eu só vi ele dois dias depois todo pronto, no enterro. Agora fico pensando quem aprontou ele.

Gostei muito de Varanasi, no meu último dia lá o rio estava tão alto que toda a área dos ghats estava debaixo d'água, não consegui encontrar ninguém que eu conheci, e as cremações estavam acontecendo nas plataformas apenas.





quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Manoj

Conheci em Khajuraho um garoto chamado Manoj, de 21 anos. Estava andando com a Gi uma amiga da Argentina na rua principal de Khajuraho quando um cara tentou falar com a gente, acontece o tempo todo, ignoramos. Ele deu um jeito de aparecer na nossa frente num lugar estreito de passar e perguntou muito educadamente se poderia fazer uma pergunta. Eu concordei e ele perguntou que língua eu falava e se eu poderia ensinar umas palavras pra ele. Achei fofissimo o interesse, entramos numa loja ele pediu uma caneta e um papel, escreveu uma série de palavras em inglês, como I YOU HOUSE WHAT WHERE DOOR e foi me perguntando uma a uma como eu falava em português e ao lado da palavra em inglês foi escrevendo em hindi os sons enquanto repetia. Perguntei se ele queria que eu escrevesse em português mas ele disse que não porque não serviria pra ele. Escreveu quase umas 50 palavras, quando chegou ao fim me perguntou quanto eu cobraria para ensinar 500 palavras pra ele, eu disse que não queria dinheiro e que poderia ensinar sem problemas, não sei se teria tempo para 500 palavras mas o número que a gente chegasse tava legal. Fiquei animada com o interesse dele, a gente combinou de se encontrar as 18h do dia seguinte, ele disse que me buscaria no hotel e a gente podia jantar na casa dele, concordei porque aqui é uma cidade muito pequena então de qualquer lugar eu sei voltar sozinha pro meu hotel.

No dia seguinte fui na casa dele, ele tem duas casas, uma tem uns cômodos e um terraço, e a outra tem um corredor e um quarto, ambas tem luz elétrica. No corredor tinha montado uma mini fogueira onde a mãe dele estava cozinhando, ele me disse que prefere comida feita na lenha do que no gás, acho que ele não tem fogão, não sei se ele prefere mesmo ou se só falou isso pra justificar a falta de fogão. A casa dele parece muito pobre porque não tem nada dentro, quase não tem móveis, mas na verdade a família dele é uma das mais ricas da região. O pai dele tem uma farmácia e ele tem duas casas, só isso já indica que ele tem grana. os signos da riqueza e da pobreza na India são muito diferentes de todos os outros lugares que eu já fui no mundo, estar aqui é uma constante resignificação da realidade, a Índia quebra todas as certezas que você tinha na cabeça, é um esforço constante aprender e entender os signos da realidade aqui. É o que me dá medo porque as vezes não da pra entender nada, nada é reconhecível, mas isso ao mesmo tempo é o que é mais interessante, tudo é diferente.

O Manoj tem dois irmãos e uma irmã, todos mais novos, os dois irmãos vão a escola e a irmã não, a escola é cara então só da pra pagar pra dois. As escolas públicas são ruins, não vale a pena colocar ninguém, segundo ele. A irmã tem uns 13 anos. A mãe dele tem um monte de dente faltando na boca. (A situação das bocas aqui na India é assustadora, é muita gente desdentada, com dente quebrado, com dente completamente preto de cárie ou vermelho de mascar tabaco, é terrível, a Índia precisa de uma legião de dentistas e informação sobre higiene bucal urgente, só penso na Mirela minha dentista que é também professora da UFRJ, ela ia morrer se viesse pra cá). A avó dele usa sari sem top, a parte da frente do sari que cai sobre o ombro ela usa para tampar os seios, e ela tem várias tatuagens nos dois braços e cabelo longo e branco, muito estilo. É muito comum pessoas com tatuagem por aqui mas não tem nada a ver com as tatuagens que a gente tem no ocidente, geralmente se tatua a criança com a primeira letra do nome dela, e tatua-se o OM e outros símbolos religiosos, vi um monte de criança tatuada. Esse tipo de tatuagem não é bem visto pelas pessoas, é coisa de vilarejo, associam com gente não educada. Mas eu acho que está começando a mudar o conceito de tatuagem por aqui, não nos vilarejos mas em Mumbai deu pra ver meninas e caras com tatuagens com o mesmo conceito que no ocidente, passarinho, borboleta, qualquer coisa escrita, tattoo no pulso, nas costas, etc. Essas tatuagens dos vilarejos geralmente são na mão e no meio do braço, a avó dele tinha umas 6 em cada braço, começando na mão a primeira e as outras espalhadas pelo braço em linha reta até chegar no ombro, uns símbolos pequenos que não davam pra entender o que eram pois estavam muito borrados. Ela tem uns 70 anos ele me disse. Começamos a escrever as palavras, ele já tinha as palavras em inglês escritas num caderno, me disse que ficou até 1h da manhã escrevendo elas, fui falando elas em português e ele foi anotando os sons em hindi, cheguei em algumas palavras que eu não sabia o que era, perguntei e algumas ele não sabia também, ai perguntei como ele tinha escolhido aquelas palavras e ele me mostrou uma lista no fim de um dicionário inglês-hindi. No fim do dicionário tinha listas como Partes do Corpo, Animais, Plantas, Escola, ele pegou as primeiras palavras dessas listas e fez a dele, mas achei muito esquisito ele colocar palavras que ele próprio não conhecia, tinham partes do corpo que eu não faço a menor ideia de onde são no corpo. Traduzimos umas 200 palavras e ele quis parar, demos uma caminhada pelo vilarejo (muito escuro) e voltamos pra casa dele. A mãe dele me deu comida e ele comeu também, mas ninguém mais comeu com a gente, nem sentou com a gente. A gente comeu sentado numa espécie de cama, único móvel da casa com a fogueira.

Falei que ia ficar mais 3 dias em Khajuraho e depois ia para Varanasi, ele perguntou porque eu não ficava mais ali, falei que era caro ficar pagando hotel, que eu tinha que mudar de cidade pra conseguir ver todos os lugares que eu queria ver com o dinheiro que eu tinha, e ele falou que se eu quisesse podia ficar na casa dele. Eu gosto de falar de dinheiro com os indianos porque eles tem a ideia de que todo estrangeiro é rico (no Brasil também tem essa ideia), gosto de mostrar que eu nao sou rica e que a maioria dos mochileiros está viajando com pouquissimo dinheiro e economizando o máximo possível.  Espero que um dia acabe essa cultura de tirar proveito de turista. Ele me contou que seu sonho pro futuro é abrir um ashram para os estrangeiros ficarem de graça e com o dinheiro que eles pagariam em hotéis eles poderiam dar para os pobres. Ideia torta, a parada do ashram é justamente fazer o bem sem querer nada em troca. Me perguntou se eu vi gente pobre na índia e eu disse que sim muita gente, e ele me falou que eu não vi nada, que eu não vi as pessoas esfomeadas que não tem o que comer no dia, que os pedintes que eu vejo não são nada. Ele disse que gosta das pessoas pobres, que todo ser humano é bom, mas que não gosta das pessoas dos hotéis nem dos restaurantes nem das lojas, ele prefere ficar nas montanhas e no campo, ele não gosta da cidade. Ele perguntou se eu gostava de cerveja, eu disse que sim, ele disse que pensou que ele poderia dar o jantar e eu dar a cerveja, meio esquisito porque a gente já estava jantando, falei legal amanhã a gente pode fazer isso, hoje a gente já ta comendo, perguntei se ele gostava de cerveja ele disse que não, que era pra mãe dele, ai perguntei se as mulheres podiam beber assim e ele disse que não mas que ela bebia escondido, porque ela tinha uma doença na barriga e cerveja ajudava. Muito esquisito. Ele me convidou pra ver uma árvore cheia de vaga-lumes, parecia lindo mas ficava a 4km da casa dele, ele quis ir de moto mas não achei seguro ir não. Pra mim é impossível confiar nas pessoas assim, ainda mais em homem, ainda mais indiano, com a quantidade de história de estupro que tem aqui.. Mesmo com tudo legal, ele me chamou pra jantar na casa dele, me apresentou a família dele, 4km de moto, a noite, sozinha, no meio do mato, não topo não. Digo pra mim porque encontrei varias garotas ao longo da viagem que toparam esse tipo de convite e foi legal, não aconteceu nada ruim, a Gi mesmo que estava viajando comigo confia muito mais nas pessoas do que eu. Ele percebeu um pouco, tentou amenizar essa situação me mostrando fotos de sua namorada, como quem diz ‘não vou te fazer mal nem te estuprar, eu tenho namorada’. A namorada dele é da Turquia, ela mandou pra ele por correio um livro feito a mão cheio de fotos deles juntos, ela deve ter a idade dele, é gordinha e muçulmana, mas não usa o véu nem roupas islâmicas. Daqui a um mês ela vem visitar ele, eles pensam em casar, ele me disse que lutou muito contra sua família pra ter o direito de ficar com ela, ele é hindu da casta brâmane. Perguntei se ele tem vontade de ir visitar ela e ele disse que não, que não sai dali, ela que vem. E que ele é o chefe da relação, que se ele pede ela faz, mas que se ela pede ele decide se quer fazer ou não. Falei que não era muito justo, ele disse que falou com ela que era assim ou não era e que ela topou, deixou claro que ela estava ciente das regras da relação.

Depois de jantar ele me levou até o hotel, fomos andando. No caminho encontramos um grupo de mulheres cantando, muito bonito, e uns senhores que ele me disse serem os chefes do vilarejo. Eram 5 senhores bem velhos, um estava sentado no meio da rua com uns homens, um outro estava jogando cartas com outro grupo de homens, e um é muito muito velho e está em casa doente, não sei dos outros dois. Ele me disse que o vilarejo não precisa de polícia porque quando alguém tem um problema eles falam com esses velhos e eles são responsáveis por julgar o caso. A pouco tempo teve um caso bem brutal na India em que uma garota de um vilarejo namorava um garoto de outro vilarejo e para puni-la os chefes do vilarejo decidiram que ela deveria ser estuprada por todos os homens da cidade. Outro caso também recente, um rapaz fez alguma merda não lembro o que, chefes do vilarejo decidiram como punição que sua irmã fosse estuprada por todos os homens do vilarejo. Li ambas as notícias no jornal aqui, lembro de ler e ficar pensando que vilarejos são esses meu deus do céu  cadê a lei quem são essas pessoas más que tomam esse tipo de decisão não é possível que esses lugares realmente existam é tão absurdo parece irreal. Mas vendo esses velhos foi bem real, é uma vila regular na India, esses senhores estão lá vivendo suas vidas dentro da sua tradição com um poder que lhes foi concedido. E provavelmente esse menino que está me acompanhando, esse cara sentado na porta de casa olhando a rua, esse senhor que cruzou a gente agora, esses são os homens do vilarejo que seguem a orientação dos velhos. Eles não são maus, não tem a ver com maldade, eles são anacrônicos e desinformados, vivem no tempo da justiça com as próprias mãos e fazem parte de uma cultura permissiva em relação a violência, especialmente contra as mulheres. Um horror.

Quando estávamos quase chegando no meu hotel ele falou que tinha esquecido dinheiro e perguntou se eu poderia comprar uma cerveja pra ele, pra ele voltar pra casa tomando. Muito esquisito porque ele já tinha falado de cerveja antes, e tinha dito que era pra mãe dele. Eu pensei e achei melhor não, falei que não queria envolver dinheiro na nossa relação, ele não entendeu muito, insistiu, disse que me pagava no dia seguinte, que eu podia dar 50 rupias. A cerveja custa 130 rúpias. Eu disse que quando ele ofereceu me pagar pelas palavras eu não quis o dinheiro dele, da mesma forma não queria que ele me pedisse dinheiro. Ele aceitou mas em um minuto falou vou te deixar aqui, daqui você já sabe ir sozinha né, eu falei ok, brigada e fui embora.

Não sei se se eu tivesse comprado a cerveja pra ele se ele teria me levado até a porta do hotel, foi uma situação muito esquisita. Muitas pessoas nessas cidades mais turísticas tentam tirar vantagem em cima dos estrangeiros, eu tenho sempre um pé atrás, eles chamam os estrangeiros de brancos enquanto se identificam como pretos, e esse menino  me falou que a India era um pais bom mas que levaram tudo dela por isso hoje ela é um pais pobre. Ele falou de um jeito tão rancoroso.  Isso é ensinado até pras crianças, mesmo  crianças com casa e comida vem pedir dinheiro na rua, se não conseguem dinheiro pedem chocolate ou moedas do nosso pais ou canetas.  As mulheres pedintes pedem dinheiro, comida, se você não dá nada elas pedem alguma coisa sua como um colar, um lenço, como se quisessem qualquer coisa, só pra tirar algo de você. As vezes também tenho a sensação de que qualquer coisa vinda dos turistas parece melhor pra eles, então pedem coisas meio que pra ter uma coisa de fora, como um status. Mas é muita gente pedindo na rua, é uma das coisas mais cansativas da Índia, é gente te abordando o tempo todo, e não pessoas pobres que precisam de algo, é gente tentando tirar proveito, é péssimo. Repensando as coisas que ele me disse, a história do ashram é muito estranha, ele quer dar quartos de graça pros estrangeiros pra investir o dinheiro deles nas pessoas pobres, muito esquisito fazer uma coisa de graça mas contar com o dinheiro, a ideia inicial dos ashrams é justamente ser livre de interesse. Esse exemplo é muito bom porque fala exatamente sobre essa natureza da India, fazer a boa ação mas querer algo em troca, a boa ação não é desinteressada.  No final fiquei em dúvida se o jantar, a experiência ‘one day in a village’, foi tudo feito pra ganhar a cerveja, pensando agora nem sei se ele realmente tinha interesse em aprender português. A gente marcou de se encontrar no dia seguinte pra continuar as palavras mas eu não apareci.

Isso é difícil sobre a Índia, eu já tenho dificuldade em confiar nas pessoas, aqui se torna quase impossível. Todo mundo que vem falar comigo na rua no fim tenta me vender alguma coisa, me chama pra ir em sua loja, me pede uma foto, raras exceções, a maioria tenta tirar algo de mim. E isso não é só comigo, acontece com todos os turistas, e a quantidade de noticias sobre golpes e estupros faz com que muita gente tenha pavor de vir pra cá. Em Rishikesh em alguns cafés tinha um anúncio para uma vaga de trabalho que era falar com outros estrangeiros por skype pra contar pra eles como estava sendo sua experiência na índia para que eles perdessem o medo e mais gente viesse pra índia. Essa vaga é uma solução muito indiana, é muito ingênuo achar que isso vai trazer mais gente pra Índia  tem a maior cara de golpe.  Eu fiquei pensando se eu fosse o turista do outro lado que fosse conversar com alguém que estivesse na Índia, eu ia achar muito estranho, qual o interesse dessa pessoa de me convencer de que a india é um lugar legal de se viajar? Ai tem coisa.

Em defesa dos indianos, gente tentando tirar proveito acontece muito na rua nas cidades turísticas, mas tem um outro lado da India que é incrível, são as pessoas super protetoras. Nos trens fui acolhida por famílias que me deram comida e cuidaram de mim e me ajudaram (mesmo que eu não precisasse de cuidado), aprender a aceitar ajuda e cuidado foi uma das coisas mais legais daqui. Quando cheguei em Amritsar um senhor preocupado comigo fez questão de me levar até a porta do templo onde eu ia ficar hospedada, pagou o tuktuk e foi comigo, chegando lá achou o lugar que eu ia ficar esquisito, me deu seu telefone pra que se eu tivesse qualquer problema pudesse ligar pra ele, e me disse para não confiar em ninguém.  É engraçado porque eu aceitei ajuda dele, deixei ele me acompanhar, um monte de indianos me deram esse conselho 'nao confia em ninguém', mas eles nunca percebem a incoerência deles virem falar comigo e me darem um conselho desses. Outra vez também, no ônibus vindo pra Khajuraho, um senhor sikh foi com a minha cara, comprou biscoitos pra mim, comprou jornal em inglês pra eu ler e em hindi pra ele, em cada parada do ônibus perguntava se eu precisava de alguma coisa, qdo eu quis ir ao banheiro ele achou um banheiro e me levou,  totalmente desinteressado, gastou dinheiro comigo, não sei porquê. Não ficou puxando assunto, não sentou do meu lado, só queria saber se estava tudo bem. No início essas pessoas tentando ajudar excessivamente protetoras me assustavam, achava muito creepy, depois entendi e resolvi aceitar, é da cultura deles. No trem é muito legal, da pra conversar bastante com as pessoas, e eu ganho comida, é um clima muito legal. Mas é muito doido esse pais, por um lado os esquemas e trapaças, por outro as pessoas mais gentis. o slogan 'Increadible India' faz jus.







Gays

Conheci um rapaz da Alemanha hoje, ele me contou o único caso gay que eu ouvi até agora.
Ele conheceu um indiano que se ofereceu para apresentar a cidade pra ele. Foram a templos, aos ghats, viram o rio, andaram de moto, absolutamente comum, os indianos se oferecem o tempo todo, as vezes querem dinheiro e as vezes querem só ser amigos mesmo. No fim do dia o indiano chamou ele pra jantar no restaurante do primo dele, o indiano encostava demais nesse amigo da Alemanha, o amigo sabe que os indianos são assim, mas, incomodado, falou:
I dont like touching
Donde o indiano respondeu, But i like it, and i like you
O amigo ficou constrangido e avisou que tinha namorada, o indiano disse que ela não estava ali.

O amigo ficou com medo de colocarem alguma coisa na comida dele e foi embora, muito desconfortável. O comentário final dele foi ‘entendi como as mulheres se sentem’.

sábado, 9 de agosto de 2014

36h


Levou 36h dois trens e um ônibus para eu chegar de Aurangabad (Maharastra) em Khajuraho (Madhya Pradesh). O plano original levava 19 horas, coisa pra caramba, mas 36 a India se superou. Fui em Aurangabad ver Ellora e Ajanta, ainda vai ter um post sobre isso, mas preciso contar sobre esse dia no trem.

Sai do hotel as 21h do dia 31/07, peguei um trem as 21:30h de Aurangabad para Manmad, cheguei lá 00:30h. As 2:10am era pra eu pegar um trem de Manmad para Satna, a 100km de Khajuraho, ia dormir a noite toda no trem e chegar em Satna as 16h do dia seguinte, de lá pegava um ônibus e estava em Khajuraho 20h do dia 01/08. Esse trem atrasou 10 horas. As 2h ele atrasou pras 6h, as 6 ele atrasou pras 10:30h, de 10:30h atrasou pra meio dia, 12:30h ele chegou. Parecia um fantasma, demorou tanto e eu estava tão cansada que nem acreditei quando ele realmente chegou. Teve uma chuva sinistra em Mumbai e por isso muitos trens atrasaram, conversei com um senhor que estava a 14 horas esperando. Passei a noite inteira na estação de trem, as pessoas esticam lençóis no chão e dormem a noite toda na estação esperando algum trem, dormem famílias inteiras, 15 pessoas juntas, todo mundo no chão. Sentei no chão num pedaço de jornal e tirei uns cochilos abraçada na minha mochila. A estação é muito suja, tem mosca pousando em você o tempo todo e ratos passando pra lá e pra cá, pra dormir é um lugar péssimo. O banheiro custa 5 rupias se você for fazer xixi e 10 se você for fazer cocô, tem uma mulher na porta do banheiro perguntando o que você vai fazer, a situação toda é bem absurda, ter que avisar o que você está indo fazer no banheiro. A palavra privacidade não existe na India, então tudo se justifica, 90% das pessoas que falam comigo na rua a primeira resposta que vem na minha cabeça é “it’s not of your business”, mas estando aqui nem adianta.

 Dormi de meio dia até as 17h no trem, quando acordei nas camas de baixo tinha uma família grande viajando. Começamos a conversar, eles me deram muita comida, foi bom porque eu só tinha banana e uns biscoitos ruins pra comer, eu dividi minhas bananas com eles. Eles estavam indo visitar um templo não sei aonde, ia levar um dia e meio no trem para chegar lá, e eles iam passar so dois dias na cidade, então eles iam passar um total de 3 dias no trem pra ficar dois dias no templo. Junto com eles estava viajando todo o vilarejo junto, mais de 250 pessoas no mesmo trem todos indo para esse mesmo templo, celebrar um festival jainista, o trem era uma festa, com gente trocando comida e se cumprimentando. As famílias levam comida para todas as refeições do tempo que vão passar no trem, eles não compram nada, geralmente levam até água.


Li e dormi mais um pouco, as 2am acordei com o despertador e fui pra saída do vagão, tinham uns homens fumando e carregando o celular. As 3h chegou minha estação, saltei e fiquei esperando amanhecer. Algumas pessoas dormindo na estação e trens chegando o tempo todo, e vários vendedores de chá pra lá e pra cá. As 6am peguei um tuktuk pra estação de ônibus, as 6:30am peguei um ônibus pra Khajuraho e as 10h cheguei aqui. 36h.


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Dream Hampi


Hampi! Que lugar demais, a cidade é muito calma, é um vilarejo de interior, funciona menos como uma cidade turística e mais como um vilarejo mesmo, é incrível. Tem restaurantes com comidas ocidentais e tem lojinhas mas não muitas, não tem aquele bazar grande na cidade toda, e as pessoas não estão preocupadas com os estrangeiros, elas estão vivendo a vida delas.  São casas com crianças indo pra escola, as crianças usam uniforme e as meninas usam tranças elaboradas nos cabelos, as mulheres usam sari e os homens usam lungi e camisetas sem manga. Tem muitas casas feitas de esterco de vaca, o processo é bem parecido com o pau-a-pique brasileiro, as paredes são de esterco com gravetos que formam a estrutura, quando o esterno seca pintam de colorido. Não entrei em nenhuma casa assim, mas andando pela rua as casas não deixam cheiro ruim não. A roupa dos homens é incrível, é como um sari masculino, é um tecido único que amarram em torno da cintura, com 2m eles usam como uma saia longa e com 6m o resultado final parece uma calça/fralda, é lindo! Sem costura nenhuma, só enrolações e amarrações. Não sei porque mas o jeito que eles se vestem é o que me da a sensação de que ninguém aqui liga pra mim, eles estão na casa deles, na cidade deles. Digo isso porque algumas cidades giram em torno do turismo de tal forma que não dá pra ter um minuto de sossego, é gente na rua tentando te vender coisa o tempo todo, motorista de tuktuk te chamando, gente convidando pra entrar no restaurante, pra alugar bicicleta, pra comprar pacote de viagem, pra comprar cogumelos mágicos, perguntando de onde você é, crianças pedindo dinheiro, chocolate caneta, é um inferno. Hampi tem crianças tentando vender cartões postais de forma exaustiva, mas tirando isso a cidade é bem tranquila.

É muito louca a sensação de estar na India agora, é muito diferente do início. Antes eu tinha a sensação de que nada aqui era real, parecia um mundo paralelo, tudo parecia tão absurdo, as mulheres de sari, camelo no meio da rua, as vacas, criança pelada sentada no chão cheio de lixo em volta, esses tuktuks que parecem de brinquedo. Agora tenho a sensação que as coisas aqui são muito reais, caiu o folclore. Eu vejo as mulheres de sari ou com outras roupas típicas cheias de jóias e brincos no nariz e elas não parecem mais ‘típicas’, elas são assim, não precisa mais de um adjetivo. Perde um pouco a graça mas é legal porque as coisas não parecem mais exóticas como elas pareciam no início e antes de eu estar aqui, elas parecem normais, cotidianas. Esses homens com tecido amarrado em torno do corpo antes me pareciam saídos de um filme muito anacrônico, ou moradores de um vilarejo muito distante, daqueles que você lê noticias absurdas nos jornais, como se eles não fossem o normal. A sensação quando eu via eles era de pitoresco, ‘a índia tem gente vestida assim mas esse não é o comum, o comum é gente vestida assado’, ideia boba porque não tem assim e assado, mas enfim.  Agora eu olho eles e eles são absolutamente comuns, a vida deles é assim mesmo, essa é a roupa que eles passam o dia, eu é que to no vilarejo. A India é um gigante vilarejo cheio de tradições e costumes e praticas e tantos detalhes. As mulheres assistem novela de sari, vão ao rio lavar roupa, os homens dirigem motos com lungi, eles vão ao templo, fumam cigarros locais e se encontram para tomar chá. Antes eu olhava pra eles e tinha a impressão de que eles estavam com roupa de festa junina, algo muito típico e tradicional, e que quando você vê você entende o que é mas sabe que aquilo não é o normal. Agora eu olho eles e eles continuam vestidos de festa junina, mas eu entendi que isso é o dia a dia deles, não é nada especial ou fora do normal. Estando nessa vila absolutamente todos os homens se vestem assim, é assim mesmo a vida deles. É como se tivesse perdido a magia, mas de um jeito interessante, significou humanizar, eu consigo ver a realidade deles acontecendo, não é mais algo exótico e distante, me faz sentir que a gente está coexistindo no mesmo espaço, quando antes eu tinha a sensação de que a gente pertencia a dois mundos bizarramente diferentes.



Lungi


As casas em Hampi tem até dois andares, a maioria das guesthouses fica no segundo andar das casas, pertencem a família do primeiro andar que fez um puxadinho e abriu uma guesthouse. A cidade tem monumentos arquitetônicos do século XV espalhados em todo o entorno, é lindíssimo, antigamente era capital de um reinado, por isso as construções. Tem muito espaço aberto, da pra ver o céu imenso e um mundo de coqueiros que vão até o horizonte, muitas pedras, um rio lindo e enormes plantações de banana. As montanhas de pedras estão organizadas em posições e equilíbrios muito impressionantes, é uma formação natural que pra mim parece que choveu pedra por isso elas estão naquelas posições, e parece que elas vão se mexer a qualquer momento. Tem pilhas de pedras imensas, é muito diferente, eu nunca tinha visto uma paisagem assim.

Passei 5 noites lá com uma amiga da Grécia, no primeiro dia fomos andar pelas ruinas locais e ver o templo principal da cidade, dentro do templo tem uma elefanta que se você der dinheiro ou comida ela bota a tromba na sua cabeça em sinal de benção, é linda, muitos indianos dao dinheiro pra ela, ela pega o dinheiro com a tromba, entrega pro cuidador e coloca a tromba na cabeça das pessoas. Vimos um pôr do sol lindo esse dia. 



Virupaksha Temple
Lakshimi


No dia seguinte fomos ver Lakshimi a elefanta tomar banho no rio, quem quiser pode tomar banho com ela e dar banho nela. De tarde fomos nadar numa parte muito afastada do rio, é uma parte do rio que geralmente fica de baixo d’agua, então as pedras tem formatos arredondados e marcas da agua que escorre sempre, é incrível. Precisamos de um guia para encontrar o lugar, no caminho achamos uma arvore de carambola, foi demais, a Eirini amiga da Grécia nunca tinha visto carambola. Nos dois dias seguintes fizemos amigos franceses e alugamos motos, um dia passeamos pelos templos mais afastados e no outro fomos para o outro lado do rio. O outro lado do rio é ainda mais interessante, tem muitas plantações de arroz, banana e coco, uma represa gigante, é muito vazio com algumas casas no meio do nada, visitamos um templo de Hanuman no alto de um morro, foi preciso subir 500 degraus para chegar. Lembrei da Igreja da Penha, quando eu voltar pro Rio vou lá. Chegamos no templo na hora do almoço, os homens que vivem no templo nos convidaram para comer com eles,  foi como em Amritsar, todo mundo sentado junto no chão e pessoas distribuindo comida em baldes grandes. Foi um dia incrível com uma sensação de liberdade tão grande e sem preocupações.




No último dia acompanhei um casal de 82 (ele) e 86 (ela) anos conversando, eu estava andando na rua e começou a chover (monções), eu corri pra me abrigar embaixo de uma marquise que na verdade era a varanda da casa deles. Eles estavam sentados na varada, ambos muito muito velhos com a pele enrugada e corcundas, ele de bengala, tecido amarrado na cintura, camiseta e uma toalha azul em volta do pescoço; ela de sari cor de rosa, óculos fundo de garrafa e um olho cego fechado embaixo do óculos. Por causa da lente o olho aberto parecia enorme e o fechado quase não dava pra ver. A neta deles me contou que eles sao melhores amigos um do outro, eles estavam conversando pra caramba, de um jeito bem idoso, um falava uma coisa e o outro respondia um tempo depois, e ai um ria, muito legal de observar. Eles combinaram alguma coisa, não entendi nada, no fim ele levantou falando e saiu andando pra rua muito lerdo de bengala, mas decidido como se eles tivessem concluído algo como ‘ então eu vou ali comprar verduras e ja volto’.

No fim do dia peguei um ônibus e fui embora, e o paraíso Hampi ficou pra trás, protegido pelo rio e pelas pedras lindas do sul da India.