Conheci
em Khajuraho um garoto chamado Manoj, de 21 anos. Estava andando com a Gi uma
amiga da Argentina na rua principal de Khajuraho quando um cara tentou falar
com a gente, acontece o tempo todo, ignoramos. Ele deu um jeito de aparecer na
nossa frente num lugar estreito de passar e perguntou muito educadamente se
poderia fazer uma pergunta. Eu concordei e ele perguntou que língua eu falava e
se eu poderia ensinar umas palavras pra ele. Achei fofissimo o interesse, entramos numa loja ele pediu uma caneta e um papel, escreveu uma série de
palavras em inglês, como I YOU HOUSE WHAT WHERE DOOR e foi me perguntando uma a uma como eu falava em português e ao lado da palavra
em inglês foi escrevendo em hindi os sons enquanto repetia. Perguntei se ele
queria que eu escrevesse em português mas ele disse que não porque não
serviria pra ele. Escreveu quase umas 50 palavras, quando chegou ao fim me
perguntou quanto eu cobraria para ensinar 500 palavras pra ele, eu disse que
não queria dinheiro e que poderia ensinar sem problemas, não sei se teria tempo
para 500 palavras mas o número que a gente chegasse tava legal. Fiquei animada
com o interesse dele, a gente combinou de se encontrar
as 18h do dia seguinte, ele disse que me buscaria no hotel e a gente podia
jantar na casa dele, concordei porque aqui é uma cidade muito pequena então de
qualquer lugar eu sei voltar sozinha pro meu hotel.
No dia seguinte fui na casa dele, ele tem duas casas, uma tem uns cômodos e um terraço, e a
outra tem um corredor e um quarto, ambas tem luz elétrica. No corredor tinha montado
uma mini fogueira onde a mãe dele estava cozinhando, ele me disse que prefere
comida feita na lenha do que no gás, acho que ele não tem fogão, não sei se ele
prefere mesmo ou se só falou isso pra justificar a falta de fogão. A casa dele parece muito pobre porque não tem nada dentro, quase não tem móveis, mas na verdade a família dele é uma das mais ricas da região. O pai dele tem uma farmácia e ele tem duas casas, só isso já indica que ele tem grana. os signos da riqueza e da pobreza na India são muito diferentes de todos os outros lugares que eu já fui no mundo, estar aqui é uma constante resignificação da realidade, a Índia quebra todas as certezas que você tinha na cabeça, é um esforço constante aprender e entender os signos da realidade aqui. É o que me dá medo porque as vezes não da pra entender nada, nada é reconhecível, mas isso ao mesmo tempo é o que é mais interessante, tudo é diferente.
O Manoj tem dois irmãos e
uma irmã, todos mais novos, os dois irmãos vão a escola e a irmã não, a escola
é cara então só da pra pagar pra dois. As escolas públicas são ruins, não vale
a pena colocar ninguém, segundo ele. A irmã tem uns 13 anos. A mãe dele tem um monte de
dente faltando na boca. (A situação das bocas aqui na India é assustadora, é
muita gente desdentada, com dente quebrado, com dente completamente preto de
cárie ou vermelho de mascar tabaco, é terrível, a Índia precisa de uma legião
de dentistas e informação sobre higiene bucal urgente, só penso na Mirela minha
dentista que é também professora da UFRJ, ela ia morrer se viesse pra cá). A
avó dele usa sari sem top, a parte da frente do sari que cai sobre o ombro ela
usa para tampar os seios, e ela tem várias tatuagens nos dois braços e cabelo longo
e branco, muito estilo. É muito comum pessoas com tatuagem por aqui mas não tem
nada a ver com as tatuagens que a gente tem no ocidente, geralmente se tatua a
criança com a primeira letra do nome dela, e tatua-se o OM e outros símbolos
religiosos, vi um monte de criança tatuada. Esse tipo de tatuagem não é bem visto pelas pessoas, é coisa de vilarejo, associam com gente não educada. Mas eu
acho que está começando a mudar o conceito de tatuagem por aqui, não nos
vilarejos mas em Mumbai deu pra ver meninas e caras com tatuagens com o mesmo
conceito que no ocidente, passarinho, borboleta, qualquer coisa escrita, tattoo
no pulso, nas costas, etc. Essas tatuagens dos vilarejos geralmente são na mão e no
meio do braço, a avó dele tinha umas 6 em cada braço, começando na mão a
primeira e as outras espalhadas pelo braço em linha reta até chegar no ombro,
uns símbolos pequenos que não davam pra entender o que eram pois estavam muito
borrados. Ela tem uns 70 anos ele me disse. Começamos a escrever as palavras,
ele já tinha as palavras em inglês escritas num caderno, me disse que ficou até
1h da manhã escrevendo elas, fui falando elas em português e ele foi anotando
os sons em hindi, cheguei em algumas palavras que eu não sabia o que era,
perguntei e algumas ele não sabia também, ai perguntei como ele tinha escolhido
aquelas palavras e ele me mostrou uma lista no fim de um dicionário
inglês-hindi. No fim do dicionário tinha listas como Partes do Corpo, Animais,
Plantas, Escola, ele pegou as primeiras palavras dessas listas e fez a dele,
mas achei muito esquisito ele colocar palavras que ele próprio não conhecia,
tinham partes do corpo que eu não faço a menor ideia de onde são no corpo. Traduzimos umas 200
palavras e ele quis parar, demos uma caminhada pelo vilarejo (muito escuro) e voltamos pra casa
dele. A mãe dele me deu comida e ele comeu também, mas ninguém mais comeu com a
gente, nem sentou com a gente. A gente comeu sentado numa espécie de cama,
único móvel da casa com a fogueira.
Falei
que ia ficar mais 3 dias em Khajuraho e depois ia para Varanasi, ele perguntou porque
eu não ficava mais ali, falei que era caro ficar pagando hotel, que eu tinha
que mudar de cidade pra conseguir ver todos os lugares que eu queria ver com o
dinheiro que eu tinha, e ele falou que se eu quisesse podia ficar na casa dele. Eu gosto de falar de dinheiro com os indianos porque eles tem a ideia de que todo estrangeiro é rico (no Brasil também tem essa ideia), gosto de mostrar que eu nao sou rica e que a maioria dos mochileiros está viajando com pouquissimo dinheiro e economizando o máximo possível. Espero que um dia acabe essa cultura de tirar proveito de turista. Ele
me contou que seu sonho pro futuro é abrir um ashram para os estrangeiros
ficarem de graça e com o dinheiro que eles pagariam em hotéis eles poderiam dar
para os pobres. Ideia torta, a parada do ashram é justamente fazer o bem sem querer nada em troca. Me perguntou se eu vi gente pobre na índia e eu disse que sim
muita gente, e ele me falou que eu não vi nada, que eu não vi as pessoas
esfomeadas que não tem o que comer no dia, que os pedintes que eu vejo não são
nada. Ele disse que gosta das pessoas pobres, que todo ser humano é bom, mas
que não gosta das pessoas dos hotéis nem dos restaurantes nem das lojas, ele
prefere ficar nas montanhas e no campo, ele não gosta da cidade. Ele perguntou
se eu gostava de cerveja, eu disse que sim, ele disse que pensou que ele
poderia dar o jantar e eu dar a cerveja, meio esquisito porque a gente já estava jantando, falei legal amanhã a gente pode
fazer isso, hoje a gente já ta comendo, perguntei se ele gostava de cerveja ele
disse que não, que era pra mãe dele, ai perguntei se as mulheres podiam beber
assim e ele disse que não mas que ela bebia escondido, porque ela tinha uma
doença na barriga e cerveja ajudava. Muito esquisito. Ele me convidou pra ver
uma árvore cheia de vaga-lumes, parecia lindo mas ficava a 4km da casa
dele, ele quis ir de moto mas não achei seguro ir não. Pra mim é impossível confiar nas pessoas assim, ainda mais em homem, ainda mais
indiano, com a quantidade de história de estupro que tem aqui.. Mesmo com tudo legal, ele me chamou pra jantar na casa dele, me
apresentou a família dele, 4km de moto, a noite, sozinha, no meio do mato, não topo não. Digo pra mim porque encontrei varias garotas ao longo da viagem que toparam esse tipo de convite e foi legal, não aconteceu nada ruim, a Gi mesmo que estava viajando comigo confia muito mais nas pessoas do que eu. Ele percebeu um pouco, tentou amenizar essa situação me mostrando
fotos de sua namorada, como quem diz ‘não vou te fazer mal nem te estuprar, eu
tenho namorada’. A namorada dele é da Turquia, ela mandou pra ele por correio um
livro feito a mão cheio de fotos deles juntos, ela deve ter a idade dele, é
gordinha e muçulmana, mas não usa o véu nem roupas islâmicas. Daqui a um mês
ela vem visitar ele, eles pensam em casar, ele me disse que lutou muito contra
sua família pra ter o direito de ficar com ela, ele é hindu da casta brâmane. Perguntei se ele tem vontade de
ir visitar ela e ele disse que não, que não sai dali, ela que vem. E que ele é
o chefe da relação, que se ele pede ela faz, mas que se ela pede ele decide se
quer fazer ou não. Falei que não era muito justo, ele disse que falou com ela
que era assim ou não era e que ela topou, deixou claro que ela estava ciente
das regras da relação.
Depois
de jantar ele me levou até o hotel, fomos andando. No caminho encontramos um
grupo de mulheres cantando, muito bonito, e uns senhores que ele me disse serem os chefes do vilarejo. Eram 5 senhores bem velhos, um estava sentado no meio da rua com
uns homens, um outro estava jogando cartas com outro grupo de homens, e um é
muito muito velho e está em casa doente, não sei dos outros dois. Ele me disse
que o vilarejo não precisa de polícia porque quando alguém tem um problema eles
falam com esses velhos e eles são responsáveis por julgar o caso. A pouco tempo
teve um caso bem brutal na India em que uma garota de um vilarejo namorava um
garoto de outro vilarejo e para puni-la os chefes do vilarejo decidiram que ela
deveria ser estuprada por todos os homens da cidade. Outro caso também recente,
um rapaz fez alguma merda não lembro o que, chefes do vilarejo decidiram como
punição que sua irmã fosse estuprada por todos os homens do vilarejo. Li ambas
as notícias no jornal aqui, lembro de ler e ficar pensando que vilarejos são
esses meu deus do céu cadê a lei quem são essas
pessoas más que tomam esse tipo de decisão não é possível que esses lugares
realmente existam é tão absurdo parece irreal. Mas vendo esses velhos foi bem real, é uma vila regular na India, esses senhores estão lá vivendo suas vidas dentro da sua tradição com um poder que lhes foi concedido. E provavelmente esse menino que está me acompanhando, esse cara sentado na porta de casa
olhando a rua, esse senhor que cruzou a gente agora, esses são os homens do
vilarejo que seguem a orientação dos velhos. Eles não são maus, não tem a ver com maldade, eles são anacrônicos e desinformados, vivem no tempo da justiça com as próprias
mãos e fazem parte de uma cultura permissiva em relação a violência,
especialmente contra as mulheres. Um horror.
Quando
estávamos quase chegando no meu hotel ele falou que tinha esquecido dinheiro e
perguntou se eu poderia comprar uma cerveja pra ele, pra ele voltar pra casa
tomando. Muito esquisito porque ele já tinha falado de cerveja antes, e tinha
dito que era pra mãe dele. Eu pensei e achei melhor não, falei que não queria
envolver dinheiro na nossa relação, ele não entendeu muito, insistiu, disse que me pagava
no dia seguinte, que eu podia dar 50 rupias. A cerveja custa 130 rúpias. Eu disse que quando ele ofereceu me pagar pelas palavras eu
não quis o dinheiro dele, da mesma forma não queria que ele me pedisse dinheiro. Ele
aceitou mas em um minuto falou vou te deixar aqui, daqui você já sabe ir
sozinha né, eu falei ok, brigada e fui embora.
Não
sei se se eu tivesse comprado a cerveja pra ele se ele teria me levado até a
porta do hotel, foi uma situação muito esquisita. Muitas pessoas nessas cidades mais turísticas tentam tirar vantagem em cima dos estrangeiros, eu tenho sempre um pé atrás, eles
chamam os estrangeiros de brancos enquanto se identificam como pretos, e esse
menino me falou que a India era um pais bom mas que levaram tudo dela por
isso hoje ela é um pais pobre. Ele falou de um jeito tão rancoroso. Isso é ensinado até pras crianças, mesmo crianças com casa e comida vem pedir
dinheiro na rua, se não conseguem dinheiro pedem chocolate ou moedas do
nosso pais ou canetas. As mulheres
pedintes pedem dinheiro, comida, se você não dá nada elas
pedem alguma coisa sua como um colar, um lenço, como se quisessem qualquer coisa, só pra tirar algo de você. As vezes
também tenho a sensação de que qualquer coisa vinda dos turistas parece melhor pra eles,
então pedem coisas meio que pra ter uma coisa de fora, como um status. Mas é muita gente pedindo na rua, é uma das coisas mais cansativas da Índia, é gente te abordando o tempo todo, e não pessoas pobres que precisam de algo, é gente tentando tirar proveito, é péssimo. Repensando
as coisas que ele me disse, a história do ashram é muito estranha, ele quer dar
quartos de graça pros estrangeiros pra investir o dinheiro deles nas pessoas
pobres, muito esquisito fazer uma coisa de graça mas contar com o dinheiro, a
ideia inicial dos ashrams é justamente ser livre de
interesse. Esse exemplo é muito bom porque fala exatamente sobre essa natureza da India, fazer a boa ação mas querer algo em troca, a boa ação não é desinteressada. No final fiquei em dúvida se o jantar, a experiência ‘one day in a
village’, foi tudo feito pra ganhar a cerveja, pensando agora nem sei se ele
realmente tinha interesse em aprender português. A gente marcou de se encontrar no dia seguinte pra continuar as palavras mas eu não apareci.
Isso
é difícil sobre a Índia, eu já tenho dificuldade em confiar nas pessoas, aqui se torna quase impossível. Todo mundo que vem falar comigo na rua no fim tenta
me vender alguma coisa, me chama pra ir em sua loja, me pede uma foto, raras exceções,
a maioria tenta tirar algo de mim. E isso não é só comigo, acontece com todos os turistas, e a quantidade de noticias sobre golpes e estupros faz com que muita gente tenha pavor de vir pra cá. Em Rishikesh em alguns cafés tinha um anúncio para uma vaga de trabalho que era falar com outros estrangeiros por skype pra contar pra eles como estava sendo sua experiência na índia para que eles perdessem o medo e mais gente viesse pra índia. Essa vaga é uma solução muito indiana, é muito ingênuo achar que isso vai trazer mais gente pra Índia tem a maior cara de golpe. Eu fiquei pensando se eu fosse o turista do outro lado que fosse conversar com alguém que estivesse na Índia, eu ia achar muito estranho, qual o interesse dessa pessoa de me convencer de que a india é um lugar legal de se viajar? Ai tem coisa.
Em defesa dos indianos, gente tentando tirar proveito acontece muito na rua nas cidades turísticas, mas tem um
outro lado da India que é incrível, são as pessoas super protetoras. Nos trens
fui acolhida por famílias que me deram comida e cuidaram de mim e me ajudaram (mesmo que eu não precisasse de cuidado), aprender a aceitar ajuda e cuidado foi uma das coisas mais legais daqui. Quando cheguei em Amritsar um senhor preocupado comigo fez questão de me levar até a porta do templo onde eu ia
ficar hospedada, pagou o tuktuk e foi comigo, chegando lá achou o lugar que eu
ia ficar esquisito, me deu seu telefone pra que se eu tivesse qualquer problema pudesse ligar pra ele, e me disse para não confiar em ninguém. É engraçado porque eu aceitei ajuda dele, deixei ele me acompanhar, um monte de indianos me deram esse conselho 'nao confia em ninguém', mas eles nunca percebem a incoerência deles virem falar comigo e me darem um conselho desses. Outra vez também, no ônibus vindo pra Khajuraho, um senhor sikh foi com a minha cara, comprou
biscoitos pra mim, comprou jornal em inglês pra eu ler e em hindi pra ele, em cada parada do ônibus perguntava se eu precisava de
alguma coisa, qdo eu quis ir ao banheiro ele achou um banheiro e me levou, totalmente desinteressado, gastou dinheiro comigo, não sei porquê. Não ficou puxando assunto, não sentou do meu lado, só queria saber se estava tudo bem. No início
essas pessoas tentando ajudar excessivamente protetoras me assustavam, achava
muito creepy, depois entendi e resolvi aceitar, é da cultura deles. No trem é muito legal, da pra
conversar bastante com as pessoas, e eu ganho comida, é um clima muito legal. Mas é muito doido esse pais, por um lado os esquemas e trapaças,
por outro as pessoas mais gentis. o slogan 'Increadible India' faz jus.