domingo, 29 de junho de 2014

Amritsar

De longe o lugar mais surpreendente que eu vi até agora.

Amritsar fica no estado de Punjab, um estado de maioria Sikh, onde a língua principal é o punjabi. Só sei um pouquinho sobre sikhismo, a religião tem deus mas segue principalmente os ensinamentos dos gurus, os homens e mulheres sikhs não cortam os cabelos e pelos corporais e por isso a maioria dos homens faz uso do turbante. As mulheres não usam sari nem bindi, ambos os sexos usam uma vestimenta que lembra a qurta (túnica com calça bufante), os seguidores usam também um bracelete de prata e uma adaga ou espada. Esses elementos marcam o sikh e o diferenciam das outras religiões, conversando com seguidores me explicaram que quando a religião foi criada tinha-se o interesse de diferenciar os sikhs das outras religiões, e por isso todos esses elementos visuais. O estado de Punjab e a população sikh tem uma historia conturbada que eu só entendo um pouco, na década de 80 grupos radicais com propostas separatistas foram brutalmente reprimidos pelo governo da Indira Gandhi, o Golden Temple foi invadido e um monte de gente morreu. A própria Indira Gandhi depois foi assassinada pelos seus guardas sikhs, em retaliação a esse evento que aconteceu em 1984. Segundo o guia Lonely Planet a região atualmente vive uma estabilidade política, mas alguns dias atrás no aniversário do massacre de 1984 eclodiu uma briga sinistra dentro do templo, a foto é surreal.


http://oglobo.globo.com/mundo/briga-com-espada-em
-templo-na-india-deixa-ao-menos-12-feridos-12746970

Eu cheguei em Amritsar de ônibus local, um ônibus comum, sem ar condicionado, que cruza uma parte do estado parando em todas as cidadezinhas que tem pelo caminho. O motorista veio buzinando 3 horas seguidas, as buzinas dos ônibus aqui na India tem som de trombeta e fazem um barulho meio musical muito engraçado (que em 3h perde a graça bem rápido). O ônibus tinha TV com dvd, quando entrei estava passando um filme de Punjab e depois o motorista trocou para um dvd religioso com senhores de turbante laranja cantando. As estradas em Punjab são repletas de árvores de eucalipto e plantações de arroz, muito diferente do estado de Madhya Pradesh, que é cheio de campos de trigo.



Fui a Amritsar visitar o Golden Temple, o maior centro de peregrinação sikh do mundo. É um templo dourado muito bonito, que fica no meio de um espelho d’agua enorme, rodeado de um complexo de mármore branco onde ficam hospedagens, cozinha, administrativo, etc.  O templo fica aberto 24 horas por dia 7 dias por semana e oferece hospedagem e alimentação para todos os peregrinos que vem visitar, e isso é sustentado por meio de doações e trabalho voluntário dos próprios peregrinos. A cozinha e as hospedagens também funcionam 24/7, então da pra ir comer a qualquer hora do dia. Eu fiquei hospedada nas acomodações do templo por duas noites, são 7 prédios, eu fiquei em um dormitório destinado só para estrangeiros.

Quarto dos estrangeiros

 Os prédios são imensos e muito muito lotados, exceção o quarto de estrangeiros, que tinha umas 5 pessoas no primeiro dia e umas 15 no segundo. Os peregrinos podem ficar o tempo máximo de 3 dias hospedados no templo, então acaba que o quarto tem grande rotatividade, o que foi bom porque conheci bastante gente. O quarto dos estrangeiros tinha um banheiro com chuveiro oriental e sem privada, não sei como são os quartos para indianos, mas acho que eles não tem banheiro. Os prédios de hospedagem tem banheiros coletivos enormes de dois andares com dezenas de chuveiros orientais e privadas ocidentais. O banheiro é completamente lotado 24h por dia, no primeiro dia acordei 3h da manhã pra fazer xixi e o banheiro tinha uma fila enorme. Por sorte a fila era pros chuveiros e não para as privadas, então pra mim foi rápido. As cabines das privadas tem placas ensinando a usar a privada ocidental, com desenhos de bonequinhos sentados e bonequinhos em pé agachados na privada cortados com um X (queria ter uma foto disso). O banheiro é aflitivo porque é muito lotado, todas as mulheres estão descalças e o chão esta sempre molhado, mas apesar disso é limpo, as mulheres responsáveis por limpar ficam sentadas no chão do banheiro em um canto e com frequência limpam as privadas, boxes e pias. As privadas tem descarga e as pias tem dispensário para sabonete líquido com sabonete líquido, um detalhe pequeno mas foi o primeiro banheiro com sabonete que eu vi na índia.
Durante o dia o pátio interno das hospedagens serve para secar roupa, e durante a noite as pessoas usam pra dormir. As hospedagens tem muitos quartos, mas é muita muita gente e é uma cidade quente, então muita gente dorme ao ar livre no chão. 

acomodação em que eu fiquei hospedada
Pessoas se organizam para dormir



Como o templo fica aberto 24/7 também é possível dormir dentro do templo, é muito impressionante, fui visitar o templo a noite e tinha milhares de pessoas dormindo e outras andando e passeando, famílias inteiras. 






Durante a noite o templo propriamente, o palácio dourado no meio do espelho d’agua fecha e as rezas sessam, mas durante o dia é possível entrar e ficar lá dentro sentado ouvindo e observando as coisas. O templo é muito lindo por dentro, todo dourado com paredes pintadas com temas florais e animais delicados. Eles estão reformando as pinturas agora, então deu pra ver o trabalho de uma dupla de artesãos repintando os desenhos da parede. O prédio tem 3 andares, no primeiro ficam senhores de turbante laranja cantando rezas que são reproduzidas por todo o complexo do templo; no segundo fica o livro sagrado dos sikhs, que um deles me contou que foi escrito a mão pelo próprio deus; e no terceiro fica um espaço pra reza. Todos os andares tem caixas para doações, e para entrar tem filas organizadas, a minha levou 15 minutos.



Esses dois dias em Amiritsar foram alucinantes, foi a maior experiência de coletivo que eu tive até agora, todos os lugares são absolutamente lotados, ninguém fica sozinho nunca. A cozinha serve milhares de pessoas ao mesmo templo, as hospedagens comportam milhares, o templo recebe milhares, é muita gente fazendo tudo junto. São muitas pessoas trabalhando voluntariamente pra fazer todo esse processo funcionar, a sensação de massa é impressionante. São milhares trabalhando pra atender milhares. Para entrar no templo é preciso tirar o sapato e cobrir a cabeça, então o templo tem uma chapelaria para deixar os sapatos, e em torno do complexo tem lojinhas que vendem lenços para a cabeça e outros acessórios sikh (muitas lojas de espadas).




As pessoas andam descalças por todo o complexo do templo, inclusive nos banheiros e no salão de alimentação, para mim é muito aflitivo pois tenho a sensação de que está sujo. A sensação é infundada porque o templo é muito limpo, tem mutirões de limpeza acontecendo o tempo todo, o chão em torno da piscina é de mármore branco e está sempre limpo, pessoas passam com baldes, pegam água do centro e jogam no chão, e outros passam com vassouras limpando e tirando o excesso de água. Aos homens é possível entrar nas águas da piscina, especialmente durante o dia é cheio de homens de cueca entrando e saindo da agua (não existe sunga por aqui).

Homens se refrescando

mutirão de limpeza



Como o templo funciona por trabalho voluntário todo mundo pode participar. No último dia que eu estava lá fiquei uma hora na cozinha descascando abobora e cortando chilli. Foi impressionantemente prazeroso. Eu não estava com nenhuma vontade de participar do trabalho voluntário, ainda mais na cozinha, comida em grande quantidade geralmente me da nojo e a falta de higiene da Índia piora essa sensação. Mas eu estava com um amigo de quarto, nós fomos comer no templo e ele queria ajudar depois. Passamos uma hora sentados cortando abóbora junto com todas as outras pessoas, dezenas de indianos sentados no chão descascando alho, alguns cortando cebola, todo mundo trabalhando junto. Em volta disso fica a área onde lavam os pratos e a cozinha propriamente, uns fogareis enormes com panelões fervendo.



Essa área é muito barulhenta por causa das bandejas de metal lavando. Apesar do barulho e do espaço lotado, a sensação de estar lá foi de muita calma, a sensação de estar ajudando uma coisa infinita é demais, me senti em paz e muito útil. Alguém cortou a cebola que eu comi no almoço, e eu fui lá cortar algo que alguém vai comer depois, e isso funciona assim pra sempre 24 horas por dia tem alguém cortando cebolas e tem alguém comendo, num ciclo infinito e dar e receber, é muito lindo. No final desse dia vim para outra cidade, e me arrependi de não ter ficado lá um pouco mais. As pessoas que estavam lá trabalhando na hora ficaram muito felizes de ter a gente com eles, nos ensinaram a descascar o chilli, abriram espaço para sentarmos na roda e pediram pra tirar fotos com a gente. 






A comida do templo é simples mas gostosa, nos dois dias tinha a mesma coisa, chapati, dhal e arroz doce. No primeiro dia fiquei meio assim de ir comer no templo, não gosto de comida em bandeja, tenho nojo de comida em grande quantidade, fiquei com medo que a comida pudesse me fazer mal, o fato de estar todo mundo descalço me deixa aflita e eu não gosto de lugares cheios, não gosto de me sentir parte de um coletivo imenso. Muita frescura. Comer no templo foi uma experiência incrível, todas as pessoas sentam juntas no chão uma do lado da outra e pessoas com baldes cheios de arroz ou dhal passam distribuindo comida para todos. Assim que você acaba de comer é bom levantar pra dar espaço pras próximas pessoas que vão sentar pra comer, e você tem que levar o seu prato até o lugar onde estão recolhendo para o grupo de voluntários lavar. É uma maquina gigante de pessoas trabalhando pra atender um monte de outras pessoas, e todo mundo troca de função, um dia eu trabalho, um dia você trabalha, e sempre tem comida pra todos e lugar para todos. Foi realmente muito bonito de ver e participar, ouvi a história de um estrangeiro que estava lá a um mês trabalhando voluntariamente, quando ouvi a historia fiquei meio impressionada e com nojo e pensando nossa nunca ficaria aqui tanto tempo, e sai de lá com vontade de ficar mais.











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