A
cidade sagrada onde os hindus vêm morrer. Varanasi
tem as ruas mais estreitas que eu já vi, aqui faz as
ruas do Saara parecerem avenidas. É uma das cidades mais antigas do mundo, é
assim a parte antiga (que é a que interessa), fora da old town tem ruas
normais, lotadas de tuktuks barulhentos. Na cidade antiga os tuktuks não entram
porque não cabem, tem rua que não entra nem moto. A cidade antiga é lotada de vacas
gigantes, cachorros muito sarnentos, cabras e a noite sapos que vem rio.
Os hindus morrem cremados, nos ghats são organizadas fogueiras a céu aberto onde os corpos queimam, é impressionante não pelos corpos em si mas pela exposição da cerimonia funerária. O lugar é visualmente caótico com pilhas de madeiras altíssimas e muita fumaça e muita gente, mas até que é organizado, em torno do ghat ficam lojas que vendem madeira para cremação, ghee (é uma manteiga mais líquida, eles usam na culinária e também pra besuntar o corpo pra pegar fogo mais fácil – estranhíssimo saber que o que eu como é também usado nos cadáveres), pó de sândalo, incenso, flores, etc. As lojas de madeira tem uma balança e variedade de madeiras, a madeira da mangueira é a mais nobre pois manga é a fruta que Shiva come em uma das histórias do Bagavhagita eu acho. Isso foi o que alguém me contou, cada pessoa que eu pergunto fala um preço diferente, é impossível ter uma resposta absoluta na India, eu desisti, hoje em dia escolho a história que gosto mais. O quilo da mangueira custa entre 250 e 300 rupias, precisa de 40 quilos pra queimar um corpo, o que faz com que a cerimonia seja cara. Tem também madeiras mais baratas, que custam entre 5 e 10 rupias o quilo. Só se paga a madeira e os produtos, não se paga o fogo nem o serviço das pessoas que trabalham no ghat, ainda assim nem todo mundo pode bancar uma cerimônia dessas. Outra pessoa me disse que se paga sim os serviços e também o fogo usado. Em torno do ghat tem duas lajes onde são queimados os corpos que não cabem na plataforma perto do rio, na beira do rio cheguei a ver 8 fogueiras de uma vez, e nas plataformas 6. Em torno de 200 corpos são queimados por dia, o lugar funciona 24h por dia, o dia inteiro a noite toda.
As cerimônias são mais ou menos elaboradas dependendo da condição financeira da família, vi um corpo em uma fogueira mais robusta e com incenso, ghee, pó de sândalo e outras coisas, e outra fogueira que era só madeiras e o corpo. E isso são as famílias que conseguem pagar, no rio de vez em quando passam corpos boiando das famílias que não tem dinheiro e apenas jogam o corpo no rio. Eu não vi ainda, mas pessoas locais me falaram que é comum. Também são jogados diretamente no rio crianças menores de 10 anos, mulheres grávidas, saddhus (homens santos), leprosos e mortos por mordida de cobra. A morte por mordida de cobra é considerada uma sorte pois cobra é o animal de Shiva, então a mordida é entendida como um sinal divino. Sadhus são puros, não precisam purificar pelo fogo, crianças tem a pele fina como flor e não se joga flor no fogo (também são entendidas como puras), mulheres grávidas tem o bebê puro dentro, e leprosos acredita-se que queimando o corpo se espalha a doença pelo ar, além disso fedem muito quando queimam, por isso vão direto pro rio. Hoje vi uma criança ser jogada no rio, eles mergulham a criança no rio, enrolam o corpo numa pedra, vão de barco até o meio e o jogam do barco. Para crianças os barqueiros não cobram nada, acho que já é triste o suficiente ter que levar uma criança morta, para outros corpos cobra-se o serviço do barco; os barcos funcionam por um sistema de vez, tem muitos barcos. O pai dessa criança chorava muito hoje, foi a única pessoa que eu vi chorando em todo ghat. Os hindus queimam os corpos para purificar e depois jogam no rio que é sagrado, diz-se que morrer em Varanasi possibilita encerrar o ciclo de reencarnações e karmas e encontrar a paz iluminada do nirvana.
Em
toda a área das cremações só é permitida a entrada de homens, as mulheres foram
proibidas de participar da cerimônia há não muito tempo porque choravam muito e
porque muitas se jogavam no fogo atrás dos maridos. É difícil casar de novo na
sociedade hindu e as mulheres geralmente não trabalham e tem filhos para criar, então ficar
viúva é bem desesperador pela falta de perspectivas. É estranho que no ghat só
tem homens e eles são responsáveis por todo o processo funerário, que
responsabilidade. O familiar mais próximo do falecido (filho/ irmão/ marido)
raspa a cabeça e é o responsável por acender a fogueira. Junto com as lojas de
madeira tem um ou outro barbeiro que com uma gilete raspa a cabeça dos homens
no meio da rua.
O
ghat tem um fogo eterno que acende as fogueiras, uma pessoa me disse que o fogo
eterno acende todas as fogueiras e outra me falou que você paga 350 rupias pra
ter o fogo eterno acendendo a fogueira do seu ente querido, os trabalhadores
responsáveis por acender as fogueiras não falam inglês então não consigo mais
detalhes. Esses trabalhadores que trazem o fogo são os mesmos que montam a fogueira e
dão assessoria durante a cerimônia, me contaram que todos que trabalham com
mortos são da casta dos intocáveis, dalits. Eu não sei dizer, o sistema de
castas é muito forte mas passa quase imperceptível aos olhos dos turistas, são
sutilezas no modo que as pessoas se tratam e falam umas com as outras que sem
entender a língua eu não consigo perceber. A fogueira leva 3 horas para queimar
totalmente, ao fim os trabalhadores jogam os ossos que sobraram no rio. Pela manhã se
limpa a área para recomeçar, algumas pessoas roubam as jóias que caem dos
corpos e ficam entre os restos das fogueiras, e alguns locais pegam as brasas
das fogueiras pra fazer comida.
Em
torno das fogueiras fica uma barraca que vende pó de sândalo e outras coisas, fiquei muito tempo sentada nessa barraca conversando com o dono e outros homens,
olhando em torno e tomando chá. Os familiares ficam em torno dessa área
esperando a fogueira queimar, quando acaba se banham no rio, trocam de roupa e
podem ir pra casa. Presenciei uma briga hoje, os homens de uma família estavam
reclamando com o dono de uma das lojas que a madeira estava demorando demais
para queimar. Os vendedores de madeira vendem seu produto defendendo que essa
ou aquela madeira queima mais rápido, e as famílias compram. O lugar todo tem
muita fumaça, geralmente tem cheiro de sândalo ou meio de churrasco ruim e nas
áreas mais próximas das fogueiras arde muito o olho. No entorno tem bastante saddhus
e babas, senhores santos, e búfalos, cachorros e cabras.
Acho
louquíssimo ter essa quantidade de detalhes de um processo que no ocidente acontece
de portas fechadas e com tanta intimidade, eu vi os corpos chegando, os homens
montando a pilha de madeira, colocando o corpo, todo o ritual até colocar fogo,
eu sei se é homem ou mulher, o preço da madeira, o corte de cabelo do filho ou
marido, acho impressionante como é exposto. Na maioria dos enterros no Brasil quando o corpo morre ele
vai pro necrotério e é arrumado todo lá dentro, você não tem informação nenhuma
do processo, você não sabe quem cavou o buraco quem vai enterrar o corpo, não é
a família que coloca ele no caixão, não é a família que arruma, maquia, veste,
é tudo velado e distante. Eu lembro que quando o meu avô morreu ele estava no
hospital, eu só vi ele dois dias depois todo pronto, no enterro. Agora fico
pensando quem aprontou ele.
Nenhum comentário:
Postar um comentário