terça-feira, 26 de agosto de 2014

Varanasi



A cidade sagrada onde os hindus vêm morrer. Varanasi tem as ruas mais estreitas que eu já vi, aqui faz as ruas do Saara parecerem avenidas. É uma das cidades mais antigas do mundo, é assim a parte antiga (que é a que interessa), fora da old town tem ruas normais, lotadas de tuktuks barulhentos. Na cidade antiga os tuktuks não entram porque não cabem, tem rua que não entra nem moto. A cidade antiga é lotada de vacas gigantes, cachorros muito sarnentos, cabras e a noite sapos que vem rio.

Varanasi fica a beira do Ganga, toda a orla do Ganges é composta por escadas (ghats) onde as pessoas vão tomar banho, lavar roupa, e aqui morrer. Todos os rios que eu vi até agora tem escadas que encontram as águas. É meu segundo encontro com o Ganga, o primeiro foi em Rishikesh, dizem que lá ele é limpo, cheguei a molhar meus pés na água, mas aqui em Varanasi a notícia é de que é tão sujo que não tem mais oxigênio na água, não sei se é verdade. Ainda assim todo mundo toma banho e lava roupa. Por sorte estou num hotel que tem máquina de lavar, mas muitos outros hotéis que eu fiquei o serviço de lavanderia é no rio local. Fiquei meio com nojo quando descobri, depois me achei ingênua, óbvio que era no rio o tempo todo.

Os hindus morrem cremados, nos ghats são organizadas fogueiras a céu aberto onde os corpos queimam, é impressionante não pelos corpos em si mas pela exposição da cerimonia funerária. O lugar é visualmente caótico com pilhas de madeiras altíssimas e muita fumaça e muita gente, mas até que é organizado, em torno do ghat ficam lojas que vendem madeira para cremação, ghee (é uma manteiga mais líquida, eles usam na culinária e também pra besuntar o corpo pra pegar fogo mais fácil – estranhíssimo saber que o que eu como é também usado nos cadáveres), pó de sândalo, incenso, flores, etc. As lojas de madeira tem uma balança e variedade de madeiras, a madeira da mangueira é a mais nobre pois manga é a fruta que Shiva come em uma das histórias do Bagavhagita eu acho. Isso foi o que alguém me contou, cada pessoa que eu pergunto fala um preço diferente, é impossível ter uma resposta absoluta na India, eu desisti, hoje em dia escolho a história que gosto mais. O quilo da mangueira custa entre 250 e 300 rupias, precisa de 40 quilos pra queimar um corpo, o que faz com que a cerimonia seja cara. Tem também madeiras mais baratas, que custam entre 5 e 10 rupias o quilo. Só se paga a madeira e os produtos, não se paga o fogo nem o serviço das pessoas que trabalham no ghat, ainda assim nem todo mundo pode bancar uma cerimônia dessas. Outra pessoa me disse que se paga sim os serviços e também o fogo usado. Em torno do ghat tem duas lajes onde são queimados os corpos que não cabem na plataforma perto do rio, na beira do rio cheguei a ver 8 fogueiras de uma vez, e nas plataformas 6. Em torno de 200 corpos são queimados por dia, o lugar funciona 24h por dia, o dia inteiro a noite toda. 




As cerimônias são mais ou menos elaboradas dependendo da condição financeira da família, vi um corpo em uma fogueira mais robusta e com incenso, ghee, pó de sândalo e outras coisas, e outra fogueira que era só madeiras e o corpo. E isso são as famílias que conseguem pagar, no rio de vez em quando passam corpos boiando das famílias que não tem dinheiro e apenas jogam o corpo no rio. Eu não vi ainda, mas pessoas locais me falaram que é comum. Também são jogados diretamente no rio crianças menores de 10 anos, mulheres grávidas, saddhus (homens santos), leprosos e mortos por mordida de cobra. A morte por mordida de cobra é considerada uma sorte pois cobra é o animal de Shiva, então a mordida é entendida como um sinal divino. Sadhus são puros, não precisam purificar pelo fogo, crianças tem a pele fina como flor e não se joga flor no fogo (também são entendidas como puras), mulheres grávidas tem o bebê puro dentro, e leprosos acredita-se que queimando o corpo se espalha a doença pelo ar, além disso fedem muito quando queimam, por isso vão direto pro rio. Hoje vi uma criança ser jogada no rio, eles mergulham a criança no rio, enrolam o corpo numa pedra, vão de barco até o meio e o jogam do barco. Para crianças os barqueiros não cobram nada, acho que já é triste o suficiente ter que levar uma criança morta, para outros corpos cobra-se o serviço do barco; os barcos funcionam por um sistema de vez, tem muitos barcos. O pai dessa criança chorava muito hoje, foi a única pessoa que eu vi chorando em todo ghat. Os hindus queimam os corpos para purificar e depois jogam no rio que é sagrado, diz-se que morrer em Varanasi possibilita encerrar o ciclo de reencarnações e karmas e encontrar a paz iluminada do nirvana.




Em toda a área das cremações só é permitida a entrada de homens, as mulheres foram proibidas de participar da cerimônia há não muito tempo porque choravam muito e porque muitas se jogavam no fogo atrás dos maridos. É difícil casar de novo na sociedade hindu e as mulheres geralmente não trabalham e tem filhos para criar, então ficar viúva é bem desesperador pela falta de perspectivas. É estranho que no ghat só tem homens e eles são responsáveis por todo o processo funerário, que responsabilidade. O familiar mais próximo do falecido (filho/ irmão/ marido) raspa a cabeça e é o responsável por acender a fogueira. Junto com as lojas de madeira tem um ou outro barbeiro que com uma gilete raspa a cabeça dos homens no meio da rua.

O ghat tem um fogo eterno que acende as fogueiras, uma pessoa me disse que o fogo eterno acende todas as fogueiras e outra me falou que você paga 350 rupias pra ter o fogo eterno acendendo a fogueira do seu ente querido, os trabalhadores responsáveis por acender as fogueiras não falam inglês então não consigo mais detalhes. Esses trabalhadores que trazem o fogo são os mesmos que montam a fogueira e dão assessoria durante a cerimônia, me contaram que todos que trabalham com mortos são da casta dos intocáveis, dalits. Eu não sei dizer, o sistema de castas é muito forte mas passa quase imperceptível aos olhos dos turistas, são sutilezas no modo que as pessoas se tratam e falam umas com as outras que sem entender a língua eu não consigo perceber. A fogueira leva 3 horas para queimar totalmente, ao fim os trabalhadores jogam os ossos que sobraram no rio. Pela manhã se limpa a área para recomeçar, algumas pessoas roubam as jóias que caem dos corpos e ficam entre os restos das fogueiras, e alguns locais pegam as brasas das fogueiras pra fazer comida.

Em torno das fogueiras fica uma barraca que vende pó de sândalo e outras coisas, fiquei muito tempo sentada nessa barraca conversando com o dono e outros homens, olhando em torno e tomando chá. Os familiares ficam em torno dessa área esperando a fogueira queimar, quando acaba se banham no rio, trocam de roupa e podem ir pra casa. Presenciei uma briga hoje, os homens de uma família estavam reclamando com o dono de uma das lojas que a madeira estava demorando demais para queimar. Os vendedores de madeira vendem seu produto defendendo que essa ou aquela madeira queima mais rápido, e as famílias compram. O lugar todo tem muita fumaça, geralmente tem cheiro de sândalo ou meio de churrasco ruim e nas áreas mais próximas das fogueiras arde muito o olho. No entorno tem bastante saddhus e babas, senhores santos, e búfalos, cachorros e cabras.

Acho louquíssimo ter essa quantidade de detalhes de um processo que no ocidente acontece de portas fechadas e com tanta intimidade, eu vi os corpos chegando, os homens montando a pilha de madeira, colocando o corpo, todo o ritual até colocar fogo, eu sei se é homem ou mulher, o preço da madeira, o corte de cabelo do filho ou marido, acho impressionante como é exposto. Na maioria dos enterros no Brasil quando o corpo morre ele vai pro necrotério e é arrumado todo lá dentro, você não tem informação nenhuma do processo, você não sabe quem cavou o buraco quem vai enterrar o corpo, não é a família que coloca ele no caixão, não é a família que arruma, maquia, veste, é tudo velado e distante. Eu lembro que quando o meu avô morreu ele estava no hospital, eu só vi ele dois dias depois todo pronto, no enterro. Agora fico pensando quem aprontou ele.

Gostei muito de Varanasi, no meu último dia lá o rio estava tão alto que toda a área dos ghats estava debaixo d'água, não consegui encontrar ninguém que eu conheci, e as cremações estavam acontecendo nas plataformas apenas.





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